Heil, Trump!… ou… Trump, o grande pai da América!

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Fonte: WGCL – TV Atlanta, CBS 46

Confesso que não sei o que pensar quando vejo os comentários de certos conhecidos sobre o pronunciamento de posse de Donald Trump ontem. Algumas dessas pessoas – brasileiros, a propósito – me surpreendem por aparentemente não se darem conta do que estava por trás daquelas palavras e, assim, aplaudirem o absurdo como se fora fonte de esperança política.

Permitam-me, então, apontar algumas coisas que ouvi naquelas palavras:

Juntos determinaremos os rumos da América e do mundo por muito tempo.

Significaria isso que a visão política de Trump não é a de um Império que influencie o mundo, levando liberdade e democracia aos povos “não livres”, contribuindo para a paz e estabilidade das relações internacionais (a tradicional noção dum “Império do bem”), mas, antes, a de um “Reich” que domina com pulso de ferro por um milênio?

Eu nem precisaria ser um professor de História para reconhecer os gritos do passado aqui. E não, não se trata apenas duma horripilante semelhança discursiva a diferentes tradições fascistas. Trata-se, principalmente, dum retorno àquela pior forma de “excepcionalismo” americano – do qual, na verdade, nenhum Presidente americano (incluindo o próprio Barack Obama) se afastou plenamente até agora.

O ponto importante, aqui, é observar a escolha dos termos usados por Trump: “determinaremos os rumos da América e do mundo por muito tempo” é afirmar que agora emerge um “povo” que, sozinho, delimitará/fixará/definirá/estabelecerá/precisará o futuro de todo o planeta. E não era exatamente essa a visão de “Reich” dos nazistas?… Se esse Império emerge a partir de agora, então Trump, como o “primeiro dos cidadãos”, seria o Imperador não apenas do mundo inteiro, mas também seria o senhor do próprio tempo.

Especialmente para os ouvintes cristãos devotos – mas também judeus ou muçulmanos – aquela pequena frase deveria causar um intenso desconforto. Ali estava um Presidente prometendo que determinará, junto com seu “povo”, os destinos da Terra por muito tempo a partir de agora.

“A cerimônia de hoje, entretanto, tem um significado muito especial. Pois hoje não estamos meramente transferindo poder de uma administração a outra, ou de um partido a outro – estamos transferindo poder de Washington e devolvendo-o a vocês, o povo americano.

Por muito tempo, um pequeno grupo na capital de nossa nação tem colhido as recompensas do governo enquanto o povo tem arcado com os custos. Washington floresceu – mas o povo não partilhou de sua riqueza. Os políticos prosperaram – mas os empregos se foram e as fábricas fecharam.

Os poderosos se protegeram, mas não aos cidadãos de nosso país. As vitórias deles não foram suas vitórias; os triunfos deles não foram seus triunfos; e enquanto celebravam na capital de nossa nação, havia pouco a ser celebrado pelas famílias em dificuldade ao redor do país.

Tudo isso mudará – começando aqui mesmo e agora mesmo, pois este momento é o seu momento: ele pertence a você.”

Você consegue perceber o teor populista do trecho? O populismo poderia ser definido justamente como essa retórica política baseada na vilificação moral das elites e na veneração do povo comum para proveito do político populista. Só que, obviamente, essa retórica se esconde do espelho – já que, do contrário, o espelho refletiria a imagem daquele político como parte da elite que ele mesmo condena.

De fato, Trump não era, até agora, um “político” profissional. Mas ele também é membro da casta que “colheu das recompensas do governo”. Em 2013, por exemplo, recebeu um desconto de 40 milhões de dólares de impostos em um de seus investimentos – um imóvel em Washington, D.C. (de acordo com um relatório sobre descontos de impostos, assinado pelo Senador James Lankford [republicano], de 2015). Logo após o 11 de setembro de 2001, foi formado um fundo de apoio a microempresas da vizinhança do World Trade Center, e quem recebeu dinheiro naquela época, de acordo com uma auditoria federal de 2006? Sim, a não microempresa de Donald Trump recebeu 150 mil dólares de apoio federal!!!

Sim, o mesmo bilionário que sempre desfrutou de subsídios do governo federal e de governos estaduais e municipais para benefício de seus investimentos imobiliários – incluindo os 40 anos de abatimento de impostos pela reforma do antigo Hotel Commodore, em Nova York, em 1980, e, mais tarde, os quase 200 milhões de dólares para construir uma ligação entre uma rodovia e um outro de seus hotéis – agora ousa acusar outros por terem colhido “das recompensas do governo”. Ele se apresenta como a solução e cura, mesmo quando qualquer pessoa mediocremente informada sabe sobre alguns dos benefícios que tem recebido desde 1980.

O seu pronunciamento é, então, um ícone da pior forma de populismo possível!

Deste dia em diante, será a América primeiro.

Todos já conhecem minha repulsa à expressão “America First” (=a América [EUA] Primeiro), que encapsula em si uma horripilante história imoral de violência. Esse foi o slogan do “America First Committee” que se tornou uma organização de apoio ao Nazismo, disfarçada de movimento pela paz. Sua “paz”, com a liderança de Charles Lindbergh, era evitar que os E.U.A. declarasse guerra à Alemanha, durante a 2ª Guerra, impedindo que os nazistas exterminassem as populações judaicas.

Com Trump, esse eco pavoroso do passado ganha um novo sentido e uma outra dimensão. Os “pobres” (no jargão político americano, os derrotados no domínio da virtude empreendedora), os muçulmanos, os imigrantes e os países que recebem algum tipo de ajuda dos E.U.A. passam a encarnar um obstáculo à suposta grandeza americana.

O Império, ou melhor, o “Reich” passa a não ter mais nenhuma responsabilidade para com os dominados. A raça superior vence as inferiores na corrida pelo domínio de 1000 anos, e como estão em disputa, os superiores não precisariam se importar com os seus dominados! Parece ser uma materialização da websérie de história contrafactual “The Man in the High Castle” – a diferença é que ali é a realidade sendo fantasiada; já aqui, a fantasia é que é realizada!

Tantas coisas são feias e trágicas nessa história toda. Uma das piores é o fato de brasileiros historicamente iletrados aplaudirem aquele pronunciamento, e o personagem que o emitiu, porque o que disse se assemelha aos preconceitos que eles mesmos abraçam. Talvez não tenham compreendido que aquela foi uma mensagem para os “parasitas” da América – e que eles se encaixam nessa descrição!

+Gibson

Toxicity: o álbum explosivo e inesquecível

Gibson da Costa

 Il n'y a qu'un problème philosophique vraiment sérieux: c'est le suicide.

[Há apenas um problema filosófico realmente sério: é o suicídio.]

(Albert Camus)
 

Era setembro de 2001. Enquanto os Estados Unidos eram sacudidos pelos atentados de 11 de setembro, o novo álbum da banda System of A Down (ou “SOAD”, para os íntimos), “Toxicity” – lançado no dia 4 daquele mês – estremecia os ouvidos do público americano. A música hereticamente surrealista e tóxica duma banda de “hard rock” criou o primeiro grande reboliço político contra artistas após o 11 de setembro. A vertiginosa “Chop Suey!” foi incluída numa lista de canções inapropriadas para serem tocadas nas rádios após os ataques terroristas e outras canções foram criticadas por seu conteúdo “questionável”. E o álbum se tornou o número 1 nas listas dos mais ouvidos e comprados naquela semana de setembro.

Considero os três maiores sucessos do álbum – Chop Suey!, Toxicity e Aerials – como as grandes pérolas do rock da primeira década do século XXI. As melodias, as poesias e as vozes se juntam para formar três grandes hinos políticos dos últimos tempos – e “hinos políticos” por conta não apenas de sua beleza desordeira, mas também por causa do contexto histórico no qual se tornaram sucesso massificado. Um sucesso, aliás, construído pela união da criação artística à retórica política, moldado por uma campanha de marketing articulada pela MTV – que mesmo após a campanha contra a transmissão da canção pelas rádios, repetidamente exibia o vídeo na emissora. O banimento da canção acabou sendo vencido por seu próprio absurdo no mundo da cultura de massa, e o álbum, atacado por políticos, religiosos e amantes das chamadas “teorias da conspiração”, se tornou um ícone do rock do início deste século.

 

Em “Chop Suey!”, ouvimos o trecho-problema:

[…] I don't think you trust
 In my self-righteous suicide
 I, cry, when angels deserve to die

[…]

Father into your hands, I commend my spirit
 Father into your hands
 why have you forsaken me
 In your eyes forsaken me
 In your thoughts forsaken me
 In your heart forsaken me […]

(Não acho que você confie
em meu suicídio hipócrita,
eu choro quando anjos merecem morrer

[…]

Pai, em suas mãos, entrego meu espírito
Pai, em suas mãos
Por que você me abandonou?
Em seus olhos, me abandonou
Em seus pensamentos, me abandonou
Em seu coração, me abandonou…)

E essas palavras bastaram para o início da caça às bruxas (ou seria “aos bruxos”?) contra o SOAD. Estariam eles incentivando ataques suicida contra os E.U.A.?

 

Nenhuma resposta poderia ser mais provocadora do que a dada pelo próprio Serj Tankian, coautor da canção e vocalista da banda, logo após os ataques de 11 de setembro:

"Os ataques/bombardeios brutais desta semana, em Nova York e Washington, juntamente com ameaças de ataques lá e em outras partes do país mudaram nossa época para sempre. Enquanto a mídia de massa se concentra nos detalhes da destruição e nas palavras encobertas dos políticos, tentarei entender e explicar os eventos a partir da cerca. BOMBARDEAR E SER BOMBARDEADO SÃO AS MESMAS COISAS NOS DIFERENTES LADOS DA CERCA.
 
 O terror não é uma ação humana espontânea sem crédito. As pessoas simplesmente não sequestram aviões e cometem harikari (suicídio) sem pensar antes de agir. Ninguém na mídia parece se perguntar POR QUE ESSAS PESSOAS FIZERAM ESSE TERRÍVEL ATO DE VIOLÊNCIA E DESTRUIÇÃO? […]"

Disponível em: <http://www.blabbermouth.net/news/archive-news-sep-14-2001-2/>. Acesso: 20 jan. 2017.

[Tradução livre nossa]

E o autor continua, oferecendo sua explicação e suas sugestões para a solução do problema do “harikari”. Sua receita antiviolência se assemelhando àquela oferecida pelas grandes tradições religiosas: a segurança e a sobrevivência só seriam alcançadas através da paz! A receita, embalada por um som pesado, intrigas políticas e uma massiva campanha de marketing pode levantar uma questão sobre a arte engajada do mundo do livre mercado: o rock, agora parte da cultura pop, ainda funciona como manifesto político (mesmo quando se vende como simples mercadoria comercializável)?

As outras pérolas do álbum:

 

Donald Trump: O discurso maniqueísta quase-fascista venceu, mas não pelo voto popular

Gibson Da Costa

O derrotado pelo voto popular, mas vencedor no Colégio Eleitoral, assume a Presidência dos Estados Unidos da América hoje. Mas será mesmo que o seu discurso salvacionista-maniqueísta – sua retórica [quase-]fascista – reflete os anseios da maioria esmagadora dos eleitores americanos?

Hillary Clinton venceu Donald Trump em quase 2.9 milhões dos votos populares – isto é, os votos dados por eleitores comuns. Trump venceu as eleições porque conseguiu um número maior de eleitores no Colégio Eleitoral. Ou seja, o sistema eleitoral maluco que ele mesmo tanto criticou durante a campanha foi o único responsável por sua vitória – mesmo considerando a alta porcentagem dos votos populares que obteve. (Ele, a propósito, não foi o primeiro a perder o voto popular, mas vencer no Colégio Eleitoral.) Se o sistema eleitoral americano fosse como o brasileiro, consistindo na contagem dos votos diretos para Presidente dados pelos próprios eleitores (1 eleitor = 1 voto), ele não teria ganho desta vez!

O ponto importante é que seu discurso salvacionista-maniqueísta, sua retórica [quase-]fascista, não foi comprada pela maioria esmagadora dos eleitores americanos – como alguns pensam. Para que você tenha uma ideia, eis a porcentagem dos votos populares recebidos pelos principais candidatos a Presidente dos E.U.A. em 2016:

Hillary Clinton (Partido Democrata) → 48,2% (65.844.954 votos)

Donald Trump (Partido Republicano) → 46,1% (62.979.879 votos)

Gary Johnson (Partido Libertário) → 3,3%

Jill Stein (Partido Verde) → 1%

O resto dos votos se distribuíram entre outros candidatos minoritários. (Esses dados, a propósito, estão atualizados até 22/12/2016.)